Uma
trilha pelos campos da Chapada Diamantina segue em direção a um paredão de
pedra. O que era plano aos poucos vai se tornando subida. As pedras crescem
conforme a caminhada se alonga. Tomam o lugar do caminho, como degraus
desproporcionais de uma escada natural. A vegetação baixa não protege do sol,
que castiga. A mochila pesa. A trilha é só um risco em meio ao verde. A estrada
ficou para trás. A cidade ficou para trás. O aumento da tarifa do transporte
público ficou para trás. A única falta d’água que preocupa agora é a da
garrafinha, que já está na metade e é só o começo do caminho. Foram só os
primeiros dos mais de 80 quilômetros a serem percorridos nos próximos dias. É a
entrada do Vale do Pati.
Moldado na Serra do
Sincorá pelos rios Calixto, Pati e Cachoeirão, o vale tem altitudes que oscilam
de 400 a 1.400 metros. Não há estradas. Para se ter uma ideia, os moradores da
região não demoram menos que três horas para ir a uma das cidades dos
arredores. Sempre caminhando. Por Guiné, distrito de Mucugê; Capão, distrito de
Palmeiras; e Andaraí que se chega ao Pati. Não tem melhor caminho. Seguimos
pela trilha do Aleixo, subindo a Serra do Rio Preto. Chegar ao topo é como
adentrar um portal. Somos transportados para uma paisagem semiplana coberta por
campos de altitude. A monotonia do horizonte é quebrada por grandes morros
vermelhos. Estamos nos Gerais do Rio Preto.
Juntamente
com o Gerais do Vieira, o local é responsável por abrigar as nascentes dos rios
que formam a depressão do Vale do Pati, assim como a bacia hidrográfica do Rio
Paraguaçu, um dos mais importantes da Bahia. A caminhada se torna mais fácil e
agradável. A vegetação, que no início não passa a canela, vai crescendo a cada
passo. Aos poucos chega à cintura. Vira floresta quando escutamos barulho de
água, que corre até formar um pequeno poço. Poucos metros adiante, medo e
encanto se misturam ao notarmos que estamos ao lado de um penhasco de 280
metros de altitude. Chegamos ao cânion do Cachoeirão. O visual é de tirar o
fôlego. Mirantes deixam o turista à beira do precipício. Lá embaixo muitas
pedras e um pequeno lago. É para lá que vamos, mas só no dia seguinte.
Cachoeirão por baixo
Os
nativos que vivem no Pati abrem suas casas para receber os turistas que visitam
o vale. A pouca energia elétrica das placas solares são usadas para iluminação
e importantíssimas para recarregar a câmera fotográfica. O banho é gelado. O
fogão, à lenha. A chaleira tem sempre uma água fervendo como se esperasse a
hora do café. Nos quartos, uma cama e nada mais. Simples e bem cuidada, a
hospedagem é mais que o suficiente para garantir descanso adequado após um
intenso dia de caminhada. A trilha adentra o cânion até um poço de águas
avermelhadas em formato de coração. Estamos no pé do Cachoeirão. Dizem que
quando chove bastante são formadas até vinte quedas d’água.
As
chuvas, que chegam com intensidade em outubro, vão perdendo a força com o
passar dos meses. Havia pouca chuva quando estivemos por lá. A pouca água que
descia do paredão de 280 metros de altura, entretanto, era suficiente para
criar um espetáculo. Algumas fendas nas laterais do cânion revelam outras
quedas d’água. Em uma delas, os dez metros de uma cachoeira terminam em uma
banheira de hidromassagem natural. Seguindo pela trilha ao lado, outras
cachoeiras se formam. Combinações diversas de água, vento e a luz do sol formam
uma sequência deslumbrante fenda adentro.
Mas
já era hora de voltar. Precisávamos pegar os mochilões na casa de Seu Eduardo e
seguir para a Prefeitura. Localizada na região central do Vale, a Prefeitura é
o antigo centro administrativo da região. Hoje, como as outras casas, recebe
viajantes. Chegando lá, porém, nosso guia, o Clei, nos perguntou se não
queríamos estender a caminhada e chegar direto à casa de Dona Raquel. Seria
nosso pouso das próximas duas noites e assim evitaria mais deslocamentos com a
mochila (fato que sempre deve ser levado em consideração no planejamento da viagem).
Dona Raquel
Dona
Raquel é como a sua vó que mora no interior. Sempre tem um cafezinho com pão
feito ali mesmo no forno à lenha para oferecer a seus “netos”, uma dezena de
turistas que diariamente vem e vão de sua vida, de todos os cantos do mundo. “É
um sentimento muito grande com todo mundo que passa aqui. Alguns chegam até a
emocionar. Todo mundo sempre vem perguntar se tem um cafezinho. Eu abraço todo
mundo”, contou dona Raquel, que concluiu: “Outro dia eu fui pra São Paulo e não
abracei ninguém”.
Não
é difícil entender o choque de Dona Raquel. É proporcional ao vivido por todo o
viajante que percorre caminho inverso. No Pati não existe sinal de celular,
internet, barulho de carro, poluição de fábrica. São três geladeiras em todo o
Vale – uma delas da própria Dona Raquel – e apenas trinta moradores. Mas nem
sempre foi assim. O Pati chegou a ter 2.000 habitantes no início do século
passado. Onde hoje se vê mata, já esteve ocupado por extensas plantações de
café. A crise de 1929 iniciou um período de decadência da atividade econômica
da região. Só ficou quem não tinha como sair. A criação do Parque Nacional, em
1985, complicou ainda mais a vida de quem morava lá, com a limitação de
construções e plantio.
A
situação só melhorou com a chegada do turismo. Mas André, 28, filho de Dona
Raquel e sexta geração de “patizeiros”, está preocupado. O número de moradores
vem caindo cada vez mais rápido. “Ninguém aguenta ficar aqui não, moço. Vai
aguentar ir para Guiné duas vezes por semana para comprar as coisas? Não
aguenta”. “Quem tem filho não fica porque a criança tem que ir para escola.
Aqui tinha uma, mas fechou porque não tinha criança. Como vai abrir escola para
um só?”, desabafa. “Quem vai ficando velho também tem que sair. Os filhos não
deixam ficar. Vai que acontece alguma coisa e não tem um médico”.
A
pior parte é de manhã, antes de sair para caminhar. As dores e hematomas
acumulados dos dias anteriores pesam e a vontade é de passar o dia de pernas
pro ar. Mas para conhecer o Pati é necessário caminhar, e no terceiro dia o
foco era o Morro do Castelo. A caminhada, como não podia ser diferente, é
íngreme e cansativa. Sobe uma escada de pedras e raízes por uma hora até chegar
à entrada de uma caverna. Atravessar a gruta é caminho até o mirante do outro
lado do Morro do Castelo. Do alto, todo o vale do rio Calixto, com vista aérea
das cachoeiras do Calixto e do Funil (atrações dos próximos dias). É fácil
entender por que o Pati é considerado um dos destinos de trekking mais bonitos
do Brasil.
O
caminho para o Calixto dá a volta no Morro do Castelo, percorrendo sua encosta
irregular. É bastante cansativo, mas como era o único afazer do dia, não se
tornou tão pesado. Só restou se banhar no poço, explorar outras quedas d’água
dos arredores, e aproveitar, já que o dia seguinte é o da despedida. A
caminhada para ir embora era a mais tranquila dos últimos dias. Por isso
resolvemos passar na cachoeira do Funil antes. É a de mais fácil acesso do
Vale. O caminho vai tranquilo por uma trilha sombreada. Com cerca de 30 metros
de altura, a cachoeira tem um poção bem gelado para tomar banho. Sob a queda
d’água, pedras submersas formam uma poltrona para sentir o impacto água sobre a
cabeça com todo conforto.
Para
ir embora, o guia nos levou por um caminho com emoção, segundo ele. Saltando e
escalando pedras, subimos o rio Pati montanha acima. Ao longo do rio diversas
cachoeirinhas passam praticamente despercebidas. A abundância mantém no
anonimato algumas das belezas do Pati. Visitamos a Igrejinha, que existe desde
os tempos mais tumultuados do vale, e é o ponto de hospedagem mais próximo para
quem entra por Guiné ou pelo Capão. Após subir uma rampa, fomos presenteados
com a última vista panorâmica do Vale do Pati. Estávamos de volta aos Gerais do
Rio Preto.
Conforme
caminhávamos para ir embora, com o sol quente na cabeça e a mochila pesando as
costas, a vontade era de chegar ao carro o mais rápido possível. Mas é como na
ilha do seriado “Lost”: um esforço enorme para sair, para depois ficar dizendo
que quer voltar de qualquer jeito. O que fica foi explicado por uma
turista, no intervalo entre uma e outra dança na noite de forró da Dona Raquel:
“Depois de sair daqui, de conseguir andar isso tudo, a sensação é de que
consigo fazer o que quiser na minha vida”. Matéria do repórter Felipe Floresti,
extraída na íntegra do Portal Uol.
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